terça-feira, 25 de agosto de 2009

Admirável mundo limpo

A vida é suja e para
limpá-la criamos leis que nos protejam das ameaças, que nos blindem dos perigos,
da doença, da contaminação

Não sou
fumante. Pelo menos não tecnicamente. Vez ou outra saco uma cigarrilha ou um
charuto do bolso numa roda com amigos, ou, às vezes, em noites longas e
solitárias pelas estradas do País, acendo um cigarro para, como diz um amigo,
filósofo de padaria e, este sim, um fumante convicto, "fazer pensamento". Não
vejo glamour em fumar, mas entendo a necessidade que alguns mortais têm de se
amparar em hábitos como o cigarro. Como nunca fui dado a vícios compulsivos (há
controvérsias!), sinto-me à vontade para discorrer imparcialmente sobre o
tema.



Leis que
interferem arbitrariamente no presumido direito do indivíduo são sempre
discutíveis. As discussões se dissipariam, caso a humanidade tivesse juízo. Mas
não tem. Se as pessoas nunca dirigissem bêbadas, não precisaria haver a Lei
Seca, isso é óbvio. Se todos os fumantes tivessem o bom senso de não fumar em
restaurantes, lugares fechados, na presença de crianças ou próximo demais de
qualquer pessoa, não haveria a necessidade da lei antifumo, isso também é
óbvio.





De todo
modo, mesmo não sendo da categoria "fumante", considero a nova lei um
grandessíssimo exagero. Agora caçam-se pessoas que fumam como se caçavam
comunistas nos Estados Unidos na era McCarthy; ou como se rastreavam
guerrilheiros nas encostas do Araguaia em tempos de ditadura militar no Brasil.
Mas... que crime hediondo terão cometido? Qual a origem de tamanha ira contra os
"fumadores"?



Até concordo
que fumantes são quase sempre inconvenientes. Não bastasse a impopular fumaça
que lançam nos pulmões alheios, ainda espalham baganas por todo lado, fazem
copos e pratos de cinzeiros, e, o que é pior, fazem móveis de cinzeiros,
causando aqui e ali pequenos desastres. Mas a polêmica lei contra o fumo é
apenas a ponta do iceberg - ou se preferirem, a ponta do fog - de problema bem
maior.



A questão é:
por trás dessa e de outras leis, no bojo dessa cruzada pela assepsia pública,
parece haver um desejo inconsciente (ou não!) da humanidade de sanear, de limpar
o mundo de tudo o que é torto, sujo, do que sugere desordem, desarmonia, como se
o mundo pudesse algum dia ser um lugar plenamente limpo e confortável, livre de
contágios e impurezas. Quando digo "limpar o mundo", isso inclui desde fumantes
até carros velhos, pessoas pobres, gente malvestida, atitudes "inadequadas" e
falas politicamente incorretas.



Das
virtudes, as bíblicas e louváveis, não se veem nem sombra. A ideia de virtude
hoje sugere mais uma indústria de bons modos e bem-viver - e toda a atual
propagada cultura de bem-estar, conforto e "civilidade" burguesa espelha esse
quadro irretocável, cuja moldura é a hipocrisia - do que uma verdadeira
inteireza moral. Talvez só Deus possa saber quão insuportável será um mundo
cheio de tantas (falsas) virtudes. Todas vãs.



O poeta
francês Baudelaire dizia algo como "o amor é sujo. Para desinfetá-lo, a
sociedade criou o casamento". Aderindo ao pensamento baudelairiano, poderia
dizer que a vida é suja e para limpá-la criamos leis que nos protejam das
ameaças, que nos blindem dos perigos, da doença, da contaminação. Enquanto isso,
indiferente às leis humanas, o vírus Influenza A avança, com a promessa funesta
de milhares de mortes. Entre baforadas bissextas, grito do convés aos marujos
limpinhos: Salve-se quem puder!



Zeca Baleiro é cantor é compositor

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