quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Rolezinho e Resistência - dos escravos, dos trabalhadores, da periferia

O morador da periferia, indo para o trabalho apertado nos trens e ônibus, se comunica com os seus iguais, trocando impressões, estreitando laços e, sob este ponto de vista, leva vantagem sobre os que moram em bairros centrais, que viajam a sós em seus automóveis confortáveis.

Justamente por ser olhado pelos cidadãos como inferiores, como plebeus, escravos e não cidadãos, por defesa são solidários enquanto quem os olha vê os seus iguais como adversários.

E é este o ponto: a solidariedade que ameaça. Existe um pacto social criado para regular as relações entre os cidadãos, feito pelos cidadãos para os cidadãos. Mas o morador da periferia não é considerado cidadão, assim como não eram cidadãos os escravos e os operários. Qualquer tipo de organização oriunda da solidariedade entre os não cidadãos é visto pelos cidadãos como ameaça. Qualquer ostentação organizada pelos não cidadãos é uma ameaça.

Movimentos sociais da periferia são considerados marginais, independente de seu conteúdo artístico ou cultural. Aliás, não são considerados pelos cidadãos como arte ou cultura justamente por ser oriundo dos escravos e plebeus na ótica daqueles que se consideram cidadãos. 

Sabemos que, em Roma, a sociedade era composta pelos cidadãos, aqueles que tinham plenos direitos políticos; pelos plebeus, os homens livres sem direitos políticos, e pelos escravos. Haviam ainda os clientes, aqueles que viviam dos favores dos cidadãos. E a elite de nossa sociedade continua vendo estas mesmas classes sociais, mesmo que não estejamos em Roma. Já foi assim também por aqui, mas a união dos plebeus e dos escravos lhes garantiu direitos políticos que até então não existiam. Passamos, durante longo período, a ter apenas os clientes que se submetiam à classe dominante, já que eram dependentes econômicos dos cidadãos e por isso detentores do poder. Nada mais justo, na opinião dos cidadãos.

Nas grandes cidades, pessoas pobres sempre foram empurradas para a periferia, para lugares que os cidadãos não consideravam bons para morar, seja pela precariedade geográfica ou pela distância. Formaram-se as favelas e as regiões periféricas, sem direito a organização urbana, com transporte precário e infra-estrutura sofrível.

As comunidades das favelas e da periferia, justamente pela proximidade forçada pela falta de espaço físico, passou a conviver. As relações sociais passaram a existir e acabou por se formar uma cultura e as diferentes regiões passaram a trocar impressões,e a compartilhar suas produções culturais e artísticas, facilitado pelo acesso à informática e a uma melhor mobilidade, aliados à atual situação de melhores ofertas de emprego, o que possibilitou este intercâmbio. Passou a existir um orgulho dos habitantes destes locais ao descobrir suas capacidades culturais, possibilitando uma melhor articulação e propiciando traços sociais que os identifiquem. O orgulho de ser membro das comunidades da periferia passou a existir e se acirrar.

Com a ascensão econômica das comunidades periféricas (marginais?), passou a existir interesse comercial na exploração desta classe social. Isto aproximou os habitantes da periferia dos centros comerciais, dos shopping center que passou a ser frequentado por seus habitantes que querem mais. Criaram-se então, para os cidadãos, alguns centros comerciais de luxo, proibidos para os habitantes da periferia, já que seu poder aquisitivo não permite fazer compras nestes lugares luxuosos, como por exemplo o Shopping JK, localizado onde antes havia uma favela, removida para dar lugar a um bairro de luxo e de ostentação. Mas os habitantes da periferia, os plebeus e os escravos queria apenas dizer para os cidadãos: "eu existo e sou parte da cidade". Isto, para os cidadãos, era uma afronta. Mais que isto: uma ameaça, uma invasão de seu domínio restrito e reservado. Não se poderia admitir tal afronta. E assim, não podendo contar com os demais poderes, apelou-se para o judiciário, o último bastião da defesa dos "cidadãos", assim entendida a elite dominante que se reserva o direito de ditar as normas para os demais não cidadãos habitantes da cidade.

O "rolezinho" é apenas a ostentação da periferia dizendo para os cidadãos que esta classe existe e está presente. Que tem capacidade de articulação. Nada mais. E num erro crasso, os cidadãos transformaram uma simples afirmação em símbolo de resistência. Agora o judiciário, que atropelou leis, está mais uma vez posto à prova e corre o risco de ser desmascarado.

Vamos aguardar o próximo capítulo.